A inutilidade da promulgação fatiada da PEC 23/21: factoide ou manobra?

Por Luiz Alberto dos Santos*

Aprovada no Senado Federal em 2 dezembro, a PEC 23/21 — a “PEC dos Precatórios” ou “PEC do Calote”, ou, ainda a “PEC do Auxílio-Brasil” —, sofreu inúmeras alterações de relevo.

O texto aprovado pela Câmara, que já havia sofrido muitas alterações, não foi acolhido pelo Senado em relação a aspectos essenciais, tais como:

1) o regime de pagamento dos precatórios: esses continuarão a ser inscritos, embora o pagamento dependa da inclusão no “teto”;

2) foram incluídas disposições no art. 6, 203 e regra transitórias (art. 118 do ADCT e art. 4º da PEC) dispondo sobre o programa permanente de transferência de renda, voltado à redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza, e a regulamentação até dezembro de 2022;

3) foram alteradas as regras relativas à correção do teto de despesas do art. 107 do ADCT, limitando-se a aplicação da “folga fiscal” a despesas com ampliação de programas sociais de combate à pobreza e à extrema pobreza, saúde, previdência e assistência social;

4) foram inseridas novas regras sobre o parcelamento de dívidas judiciais relativas ao Fundeb, e limitada a aplicação desses recursos, garantindo-se que no mínimo 60% deverão ser repassados aos profissionais do magistério, inclusive aposentados e pensionistas, na forma de abono, vedada a incorporação na remuneração, aposentadoria ou pensão;

5) foi incluída alteração na data para inscrição dos precatórios a serem atendidos no exercício seguinte;

6) foram excluídos do teto de despesas e do subteto para despesas judiciais os precatórios do Fundef; e

7) em consequência, foi alterada a regra que define a ordem de pagamento dos precatórios sujeitos ao teto.

Em suma, do texto aprovado pela Câmara, foram acatadas in totum a alteração aos §§ 9º e 14 e 21 do art. 100, relativos ao uso de precatórios para amortização de dívidas. No caso do § 11 do art. 21, a alteração feita pelo Senado poderia ser considerada “emenda de redação”, mas há alteração de mérito na redação dada ao “caput” e § 1º, que ampliam as possibilidades de uso de precatórios adquiridos de terceiros para finalidades diversas.

Também foi aprovada sem alteração ao art.160, permitindo abater dívidas dos entes coma União do valor de precatórios a esses devidos. Da mesma forma, a alteração ao art. 101 do ADCT, tratando sobre a utilização de empréstimos dos entes federativos para o pagamento de precatórios, não foi alterado.

Do mesmo modo, foram aprovados sem alteração os dispositivos (art. 115 a 117 do ADCT) relativos a parcelamento de dívidas dos entes com regimes previdenciários.

Finalmente, não foi alterado o art. 3º da PEC, que fixa a regra para atualização de dívidas judiciais com base na taxa Selic.

A supressão da previsão de securitização da dívida ativa (art. 167), por ser resultante de rejeição do texto aprovado pela Câmara, não requer reexame. Trata-se de questão superada.

No caso do novo “teto de gastos”, embora a redação do art. 107 do ADCT não tenha sido alterada pelo Senado, o fato é que a aprovação dessa alteração foi condicionada à fixação de regra para emprego da folga fiscal, na forma do novo art. 4º da PEC proposto pelo Senado. Há, assim, vinculação de mérito entre os dois dispositivos, que não pode ser desconsiderada: sem a regra do art. 4º, o Senado não teria aprovado a redação dada ao art. 107 do ADCT, ampliando o teto. A supressão, pelo Senado, do § 15 do art. 107, que limitava o alcance das emendas ao Ploa, é tema superado, e não pode ser reexaminada pela Câmara.

Diversos dispositivos novos foram inseridos, entre esses a criação de comissão mista, para proceder ao exame analítico dos atos, fatos e políticas públicas com maior potencial gerador dos precatórios e sentenças judiciais contrárias à Fazenda Pública da União, e regras para restituição à União de valores diferidos, em caso de descumprimento de regras de renegociação de dívidas.

Já o novo art. 107-A, que trata do teto para pagamento de dívidas judiciais, foi integralmente alterado, inclusive com a redução da vigência para 2026, assim como tudo o mais que se refere ao pagamento de precatórios do Fundef. E ambas as alterações, que tem relevância fundamental, estão conectadas ao art. 107, inclusive quanto às regras para emprego da folga fiscal resultante e a exclusão do teto de despesas.

Como se percebe, o “coração” da PEC, com seus impactos sobre o Auxílio-Brasil e despesas da Seguridade Social, em 2021 e 2022, e até 2026, foi alterado pelo Senado, e o que não foi alterado, são aspectos secundários, embora relevantes para os entes, inclusive reduzindo o valor das dívidas judiciais a serem pagos em 2022, com ou sem a aprovação do subteto.

Promulgação de PEC ‘fatiada’
A promulgação fatiada de uma PEC é possível, embora tenha limitações objetivas a serem consideradas.

O texto aprovado por ambas as Casas, sendo idênticos e autônomos em relação ao texto alterado, poderiam, em tese, ser objeto de promulgação, separando-se para novo exame pela outra Casa as alterações de texto promovidas que envolvam o mérito da proposição.

Vale dizer: não há, em PEC, o processo legislativo ordinário de revisão, em que a Casa iniciadora tem precedência sobre a Casa revisora. Ambas as Casas devem, segundo os respectivos regimentos próprios, mas observada a Constituição, aprovar o mesmo texto, admitidas, apenas, emendas de redação (sendo certo, porém, que nem sempre os limites entre emendas de redação e de mérito são observados com precisão…).

Já as alterações, ao serem apreciadas pelo Senado, devem ser novamente objeto de exame de admissibilidade pela CCJ da Câmara, pela comissão especial que deve proferir parecer de mérito, e, finalmente, exame pelo plenário da Casa. Caso o texto seja alterado, retorna ao Senado, e assim sucessivamente, no que se chama de “efeito pingue-pongue”, até que o mesmo texto haja sido aprovado em ambas as Casas…

A promulgação fatiada abrevia esse processo: as partes de uma PEC que tenham sido acatadas, poderiam ser promulgadas, sem necessidade de aguardar a conclusão do processo em relação aos itens alterados.

Mas essa hipótese tem sido empregada com parcimônia.

Reforma Administrativa de FHC
A validade desse instrumento foi suscitada em 1998, quando da apreciação, pelo Senado, da PEC 173/95 (Reforma Administrativa).

Ao apreciar a Questão de Ordem 10.130/98, do deputado Arnaldo Faria de Sá, o presidente da Câmara, Michel Temer (MDB), decidiu que, embora fosse imprescindível que a matéria alterada pelo Senado retornasse à Câmara, seria possível a promulgação parcial de PEC “nas partes incontroversas que já tenham cumprido as exigências constitucionais”.

Considerou válida a promulgação da PEC, sem reexame pela Câmara, de supressões promovidas pelo Senado, declarando que, no caso de declaração de prejudicialidade ou emenda alteradora, somente a parte considerada prejudicada ou alterada seria objeto de novo exame, “salvo se uma das casas produzir um substitutivo”. E concluía que “o que deve ser examinado pela Câmara, quando houver alteração no Senado, é a parte emendada ou prejudicada.

Não o todo, salvo, repita-se, “substitutivo”.

Mas a tese adotada desde 1998, autorizando a promulgação fatiada, visava a economia processual, de forma a viabilizar a promulgação de “projeto de emenda à constituição federal cuja maior parte já foi aprovada por ambas as casas do congresso nacional.” Dessa forma, afirmava a decisão, no caso de emenda à Constituição, “a interpretação, por analogia, determina que a parte aprovada, nos termos constitucionais, seja promulgada pelas duas mesas do Congresso Nacional; aquela pendente de aprovação continuará a ser discutida enquanto subsistir o reenvio de uma à outra casa, quando aprovada pela vontade política qualificada tantas vezes aludida, será essa proposta remetida à promulgação. Essa é a interpretação que não leva ao absurdo.”

E firmava a tese:

“a) qualquer alteração feita pelo Senado Federal em proposta oriunda da Câmara dos Deputados, seja por supressão, prejudicialidade, adição, seja por modificação, que guarde correlação com o mérito da matéria aprovada nesta Casa, deverá ser objeto de nova apreciação por parte da Câmara dos Deputados;

b) confirmando entendimento dado à tramitação da PEC 33/95 (Reforma da Previdência), se as alterações feitas pelo Senado Federal vierem na forma de substitutivo integral, a proposta será recebida como se fosse proposta nova, seguindo todo o rito aplicado a uma proposta em início de tramitação;

c) quando as alterações forem parciais na forma de emendas supressivas, referidas emendas irão diretamente ao plenário, em dois turnos de discussão e votação, dispensando-se a tramitação no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e da comissão especial, por se tratar de matéria para a qual já fora dado parecer de admissibilidade e de mérito;

d) quando as alterações forem parciais, porém na forma de emendas modificativas e aditivas, referidas emendas somente serão submetidas a plenário após cumprida a tramitação prevista no art. 202 do regimento interno — Comissão de Constituição e Justiça e comissão especial;

e) ainda na hipótese de alterações parciais — emendas do senado federal à proposta — caberá à câmara dos deputados somente aprová-las ou rejeitá-las, não cabendo o oferecimento de emendas;

f) o restante da proposta (parte não alterada pelo senado federal) irá à promulgação, ainda que as alterações estejam pendentes de apreciação pela câmara dos deputados.”

Alguns casos
Com esse entendimento, em 2003, a PEC 41, que tratava da “Reforma Tributária” do governo Lula, foi promulgada parcialmente, na forma da EC 42/03, sendo a alteração aprovada pelo Senado para desonerar exportações destacada para tramitação em separado.

Mas, em 2005, ao apreciar a Questão de Ordem 511, o presidente da Câmara indeferiu questão de ordem em que se propugnava pela promulgação fatiada de dispositivos da PEC 227/04 (PEC Paralela da Reforma da Previdência), sob o argumento de que fora aprovado “substitutivo”, embora com textos coincidentes. E mesmo no caso de textos coincidentes, entendeu a presidência que não encerravam “matéria de tamanha relevância e urgência, a justificar seu destaque para constituição de proposição autônoma e imediata promulgação.”

O substitutivo, com efeito, consiste, em tese, em texto integral ou substancialmente modificado, com sucedâneo de outra proposição, e a aprovação determina a prejudicialidade do texto original.

Mas, de forma artificial, produzem-se, eventualmente, “substitutivos” sob a forma de emendas individuais, como ocorreu no Senado durante a apreciação da PEC 23/21. Todavia, a extensão das modificações promovidas evidencia, nesse caso, o propósito de “burla” a essa interpretação, e de forma a validar a promulgação fatiada do que não foi alterado pelas emendas aprovadas, o que de pronto foi rechaçado por pronunciamentos em plenário.

Não é questão que deixe de gerar preocupações, dada a subjetividade interpretativa do que seja ou não alteração que implique em novo juízo sobre o conjunto da emenda à Constituição. Como esclarece Newton Tavares Filho,

“…a promulgação de apenas trechos de uma unidade normativa unívoca como um artigo da Constituição pode na realidade gerar um terceiro texto, com sentido possivelmente diverso do original. A promulgação fragmentada — inovação de caráter utilitário e casuísta que acabou se incorporando à prática constitucional brasileira — deve ser condenada, na medida em que pode fraudar na prática o processo de reforma da Constituição — que exige aprovação de ambas as Casas — e a vontade expressamente manifestada por uma ou outra Casa do Congresso Nacional.”1

Já o instrumento da “PEC Paralela”, empregado durante a tramitação da PEC 6/19, a “Reforma da Previdência” de Bolsonaro, não favorece a tese da promulgação fatiada.

No caso de uma “PEC Paralela”, a PEC originária é aprovada na integralidade, ou com supressões; e forja-se “acordo” para que alterações ao conteúdo sejam aprovadas “em paralelo”, ou seja, em separado, e remetidas à Casa iniciadora, para aprovação. Contudo, até que isso ocorra, e se ocorrer, prevalecerá o texto aprovado. A PEC Paralela à PEC 6/19, por exemplo, aprovada pelo Senado em dezembro de 2019, há 2 anos aguarda exame pela Câmara, mas sequer a admissibilidade foi examinada pelos deputados.

O que não foi alterado é residual
No caso presente, o que não foi alterado pelo Senado é, na verdade, residual, e de menor relevância para a solução do problema trazido à baila com a elevação das despesas com precatórios em 2022, e que justificou o debate sobre alternativas que concedam folga fiscal e orçamentária para a implementação de medidas como o “Auxílio-Brasil”.

E, caso promulgadas separadamente, essas disposições terão efeito virtualmente nulo para amenizar a situação fiscal dos entes, e notadamente da União, instituição que cabe a implementação e custeio dessa política social.

É falso dizer que a promulgação fatiada viabilizaria o pagamento do Auxílio Brasil de R$ 400 mensais em 2021 e 2022. Na verdade, essa medida depende visceralmente tanto da alteração ao art. 107 do ADCT, quanto do novo art. 107-A, ambos alterados e condicionados pelas demais regra introduzidas pelo Senado, seja no sentido de dispor sobre a vigência do novo teto de despesas com sentenças judiciais, seja no sentido de limitar a aplicação da “folga fiscal”, tanto em 2021 quanto nos anos seguintes, decorrentes da nova redação dada ao art. 107 e do novo art. 107-A, e das regras relativas ao pagamento de precatórios do Fundef.

Entender de outra forma seria inequívoca burla à vontade do Senado Federal, e, ademais, a promulgação fatiada, como ato das mesas das duas Casas Legislativas, requer a concordância de ambas, algo que, na atual conjuntura, parece improvável.

Assim, afirmar que haverá promulgação fatiada do texto aprovado pelas duas Casas, e que essa viabilizaria o “Auxílio-Brasil”, parece não apenas tecnicamente incorreto, como materialmente inútil. Pode ser mais um “factoide” político, com o fito de desviar a atenção de problemas mais graves, ou mesmo da dificuldade de, no curto prazo, obter a apreciação pela Câmara dos Deputados das alterações aprovadas pelo Senado, fundamentais para que essa ocorresse e voltadas a reduzir a insegurança jurídica e fiscal produzida pela PEC 23/21.

Orçamento 2022
A aprovação e promulgação da PEC 23/21 é pressuposto, inclusive, para que a LOA 2022 seja aprovada com as alterações necessárias para que a despesa com precatórios seja reduzida, para que haja espaço fiscal para o pagamento do Auxílio-Brasil, e para a acomodação de despesas que foram subdimensionadas quando do envio da proposta orçamentaria ao Congresso.

Sem essa, o “teto de despesas” em vigor permanece como limite intransponível, prejudicando a gestão pública e os direitos sociais, e obriga o governo a utilizar soluções heterodoxas para o seu atendimento.

Lamentavelmente, porém, a desorganização do processo legislativo, que vem assumindo proporções mastodônticas desde 2019, não permite que se afirme que absurdos ou descalabros não ocorrerão. Contudo, caso ocorram, agravar-se-á a judicialização da conduta das Casas Legislativas, em detrimento da reputação, legitimidade e prerrogativas.

*Luiz Alberto dos Santos é Consultor legislativo do Senado, advogado, mestre em Administração, doutor em Ciências Sociais; ex-subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da PR (2003-2014); professor colaborador da Ebape-FGV. Sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas.