Rebeca Otero: Como aumentar a qualidade da educação brasileira até 2030

Os 195 países-membros da Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas (Unesco) estão em um novo ciclo de trabalhos para a melhoria da educação em seus territórios. Vencido o prazo de validade do Marco de Ação de Dakar, registrado no documento Educação para todos: cumprindo nossos compromissos coletivos e norteador das metas internacionais da área entre os anos 2000 e 2015, entra vigor neste ano o Marco de Ação de Educação 2030 (versão em inglês).

O novo texto-guia da educação mundial para os próximos quinze anos foi aprovado no fim de 2015, durante a 38ª Conferência Geral da Unesco, em Paris, na França. Suas metas têm base no que foi decidido na Conferência Mundial de Educação, realizada em maio do ano passado, na cidade de Incheon, na Coreia do Sul. Entre elas, destaca-se: a previsão de que os países da Unesco invistam, no mínimo, entre 4% e 6% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em educação, e garantam à população uma educação primária e secundária gratuita e de qualidade com duração de nove anos.

Rebeca Otero, coordenadora de Educação da Unesco no Brasil, esteve presente em todas as etapas de elaboração e assinatura dos novos documentos. Ela destaca que, enquanto muitos países não conseguiram cumprir várias das metas entre 2000 e 2015, o Brasil progrediu. “Mas, por exemplo, a garantia de qualidade e de acesso à educação infantil, a isso a gente não conseguiu chegar”, diz.

Na entrevista a seguir, Rebeca pondera aspectos positivos e negativos das políticas educacionais brasileiras frente às de outros países, e fala sobre por que a expansão do acesso à Educação Básica por aqui não foi acompanhada da melhoria do ensino e, consequentemente, da aprendizagem.

Muitos países não conseguiram cumprir as metas estabelecidas para a educação no mundo entre os anos de 2000 e 2015. O que explica isso?
A maior parte das nações não conseguiu chegar às metas do ciclo de 2000 a 2015. No entanto, tem alguns pontos que a Unesco avalia como importantes e que prejudicaram
o cumprimento. Um deles é o financiamento. Não ter uma meta de financiamento [no
documento Educação para todos: cumprindo nossos compromissos coletivos] fez com que os países não alocassem recursos [na área]. Por isso, nesse novo pacto de ação há um compromisso com esse tema. Estamos tentando trabalhar um pouco melhor essa questão do investimento, porque sem ele realmente fica difícil alcançar as metas.

Estamos aprimorando o monitoramento do cumprimento das metas para que, durante o
próprio período de quinze anos, antes que se diga “ah, não alcançou”, os países já possam ir trabalhando as suas dificuldades. O entendimento é que os países querem fazer, querem avançar. Os que não cumpriram as metas tiveram falta de vontade política e outras dificuldades mesmo. Existem países muito carentes, muito precários. Em vários deles, há necessidades de que haja doações de recursos em nível mundial, uma forma de contribuir para que alcancem as metas.

E o Brasil, cumpriu as metas estipuladas para o período? O que esperar daqui para a frente?
O Brasil teve bastante avanço. Não chegou a cumprir todas as metas, mas avançou em várias delas: cumpriu a de acesso à educação primária, a de paridade de gênero para o acesso ao ensino também. Mas, por exemplo, a garantia de qualidade e de acesso à educação infantil, a isso a gente não conseguiu chegar. Já estamos quase lá: temos 80% de crianças matriculadas na pré-escola. O Brasil avançou muito também nos sistemas de avaliação, que vão contribuir com a qualidade para a melhoria do aprendizado. Mas, no geral, ainda precisamos trabalhar várias das metas. Agora, o foco está nas novas metas, que contemplam também o que não foi alcançado antes. Se o Brasil cumprir exatamente o seu Plano Nacional de Educação, vai conseguir avançar muito e ter um papel bastante relevante em nível mundial.

Como observa o processo de universalização de acesso à Educação Básica no país? Acha que a medida foi suficiente e eficiente?
O Brasil deu acesso, ou seja, as pessoas estão na escola no ensino fundamental, há vaga para meninos e para meninas. No entanto, tem um problema de qualidade dentro da escola. Os mais novos vão à escola, mas não conseguem aprender como deveriam para que saiam de lá com o desempenho desejado. No geral, o Brasil ainda tem um problema de qualidade e estamos correndo atrás. Estamos tentando, mas ainda falta. Mas, então, como contornar a falta de qualidade na educação? Para a Unesco, isso tem muito a ver com a questão da formação do professor e com os fatores associados à educação que estão relacionados a questões sociais, à violência, às drogas, essas coisas que permeiam também, em especial, as áreas mais vulneráveis da população do nosso território, áreas onde temos uma qualidade menor da educação.

Temos de melhorar a qualidade dos professores. Não é que os nossos professores não sejam bons, eles são bons, mas precisam se qualificar ainda mais para responder a esse novo aluno do século 21. Esse professor precisa saber mexer com as tecnologias, estar atualizado, não estar sobrecarregado, ser valorizado, precisa ter um plano de carreira. Tudo isso é bastante importante. Também precisamos alocar professores onde eles são mais necessários e atrair os jovens que querem ser docentes para a carreira. E essa carreira tem de ser atrativa, tem de ter formação continuada, tem de ser respeitada pela população.

O Marco de Ação de Educação 2030 prevê a cooperação internacional para a formação docente em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. O Brasil precisa dessa ajuda?
O Brasil tem capacidade de formar os seus professores, tem diversas universidades. A gente precisa melhorar essa formação inicial, fazer com que ela seja mais atual, mais moderna, tenham componente pedagógico maior e não só conteúdo teórico. E já temos um grupo muito bom de universidades que trabalham na formação docente inicial. Então, vejo que o Brasil pode, sozinho, resolver os seus próprios problemas com relação aos docentes, não precisa apelar para uma formação que vai ser dada por algum país. Claro que é importante também fazer um intercâmbio entre professores de vários países, fazer redes de troca de conhecimento e metodologias.

Isso também deve estar no horizonte. Mas, no geral, se o Brasil fizer um bom investimento na área docente junto às universidades, aos centros de formação, às secretarias de Educação que promovem a formação continuada, se melhorar os salários e a carreira, nossos professores rapidamente vão ter um salto muito grande de qualidade, e a nossa educação também.

É produtivo fazer marcos gerais de educação para países com históricos sociais e culturais diferentes?
Por causa dessas diferenças as metas são bem gerais. Tem, por exemplo, um compromisso com uma educação de nove anos gratuitaque deve ser oferecida em todos os países. No caso do Brasil, isso é muito pouco, porque já temos mais do que isso [em termos de oferecimento de anos de estudos]. Então, para o nosso país, é importante entender que as metas são gerais e dadas para o nível global. Ou seja, até 2030 todos os países deverão ter nove anos de educação livre, gratuita para todas as pessoas; até 2030, queremos ter o acesso à educação infantil de qualidade, em especial a pré-escola, garantida em todos os países-membros da Unesco e signatários do documento. Como as metas são muito gerais, cada país tem de desenvolver o seu plano nacional de educação.

A Unesco vai acompanhar a elaboração dos planos nacionais, que devem contemplar, no mínimo, o que foi estabelecido no Marco de Ação. No caso do Brasil, temos um Plano Nacional de Educação para os próximos dez anos. Ele contempla tudo o que o Marco de Ação solicita e ainda inclui mais quesitos. Nosso PNE tem pontos sobre a formação de professores, sobre um financiamento que chega a 10% do PIB, um percentual maior do que 4% ou 6% [como previsto no Marco de Ação]. Isso quer dizer que o PNE tem toda uma especificidade para o Brasil, e é assim que deve funcionar.

Por que os últimos marcos de ação da educação mundial priorizam a Educação Básica?
Realmente, nas metas do documento Educação para todos: cumprindo nossos compromissos coletivos, estipuladas em 2000 e válidas até hoje, havia questões sobre a ampliação da educação infantil nas escolas e nas creches. Isso é um ponto bastante importante, porque a primeira infância é fundamental para o desenvolvimento cognitivo da criança nos anos posteriores. A criança que passa por uma boa educação infantil tem muito mais chances de ter um aprendizado melhor nos últimos anos da Educação Básica. A Unesco sugere que os governos foquem bastante essa etapa e tentem expandi-la e ampliá-la. No sistema educacional brasileiro, isso é responsabilidade dos municípios, e muitas vezes as cidades não têm recursos suficientes. Isso tem de ser discutido em algum momento.

A inclusão escolar voltada especificamente para pessoas com necessidades especiais está prevista no atual Marco de Ação como prioridade internacional?
O documento é pautado pela inclusão. É um princípio presente no texto que a educação tem de ser inclusiva, tem de ser para todos, e, obviamente, isso inclui as pessoas com deficiência. Com relação ao Brasil, estamos avançados nesse sentido, temos uma legislação que obriga as escolas a incluir as crianças especiais no seu programa regular. No entanto, ainda existem desafios a serem superados: a estrutura dessas escolas para acolher essas crianças e a formação de professores. Em aspectos gerais, a escola tem de ser inclusiva, tem de estar preparada para receber os cadeirantes, os cegos, os surdos. Não é fácil, mas, a cada desafio, a escola vai se estruturando e se definindo. Também é direito dessas pessoas ter acesso à educação.

Uma curiosidade: recentemente, a área estatística da Unesco chegou a divulgar a intenção de criar uma avaliação mundial de educação. Como anda esse processo?
Essa ideia de avaliação ainda está um pouco tímida. Além do acompanhamento dos indicadores das metas dos marcos de ação, a Unesco desenvolve apenas alguns estudos relacionados à avaliação. Por enquanto, temos desenvolvido alguns estudos e feito comparações entre países. No campo da América Latina e do Caribe, desenvolvemos um estudo que se chama Terce e pode ser encontrado em nosso site [www.unesco.org]. Esse estudo faz uma comparação entre países da América Latina e do Caribe, equiparando currículos. Ou seja, compara currículos similares de diferentes nações. Para a elaboração,
foi medida a aprendizagem dos alunos a partir da aplicação de uma prova, uma avaliação.

Também foram estudados fatores associados à educação que influenciam na aprendizagem, como classe social, condição socioeconômica e escolaridade dos pais. Esse é um exemplo do início do desenvolvimento de uma avaliação maior. Mas não há um processo global de avaliação coordenado pela Unesco. O Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, sigla em inglês] é um processo mais global, mas ele só pega países da OCDE [34 nações] e alguns outros. No caso do nosso Terce, só foram avaliados países que concordaram em participar do estudo. Assim, também temos feito estudos na Ásia e na África que estão contribuindo para a construção de um processo avaliativo mais global. Mas, do meu ponto de vista, isso ainda está bastante longe de acontecer.