Na Reitoria da UFBA, economistas desmistificam argumentos a favor da PEC 55 (antiga 241)

A analogia entre as finanças públicas e a economia doméstica pode parecer didática, mas não serve para explicar o cenário econômico do Brasil – afinal, uma família não pode, como pode o Estado, emitir moeda, regular juros etc. A desconstrução dos argumentos que o atual governo e setores do pensamento econômico brasileiro têm apresentado para justificar a implementação da proposta de emenda constitucional (PEC) 241 (ou 55, na renumeração dada pelo Senado) – que congela os gastos do Estado (com educação e saúde, inclusive) por 20 anos –  foi a tônica de um debate sobre o tema realizado na manhã da segunda-feira (31/10) pela Reitoria da UFBA.

Mediado pelo reitor João Carlos Salles, o debate contou com as presenças dos economistas Gabriel Galípolo, consultor econômico independente (ex-sócio da BG – Belluzzo & Galípolo Projetos e Consultorias), e Luis Filgueiras, da Faculdade de Ciências Econômicas da UFBA, além de uma breve participação do pró-reitor de Planejamento e Orçamento da UFBA, Eduardo Mota, que apresentou um prognóstico das finanças da Universidade virtualmente sob a PEC 241. Em mais de duas horas de explanações, os dois economistas apresentaram um conjunto de argumentos consistentes que mostram que a comparação da economia de um país com a de uma casa – atualmente em voga visando convencer a população de que a PEC 241 é necessária – não se sustenta por vários motivos.

Primeiro, porque o movimento de corte de gastos feito por uma família não tem impacto sobre suas receitas – ao contrário do Estado, que tem justamente no retorno gerado pelo gasto público uma de suas mais eficazes ferramentas de regulação da economia em momentos de crise. Ou seja: quanto mais o Estado corta, mais risco ele corre de perder receita, pois deixa de dinamizar a economia através dos investimentos em obras, salários, isenções fiscais, educação e saúde dos cidadãos etc.

Segundo, porque uma família endividada não tem o poder que o Estado brasileiro hoje tem, de regular a taxa de juros que indexa sua própria dívida. Terceiro, porque nenhuma família engessa seus gastos por tanto tempo – assim como jamais nenhum país no mundo fixou um teto de 20 anos para seus gastos públicos.

E quarto, porque não é verdadeiro dizer que o Estado brasileiro tem se comportado historicamente como uma família que gasta mais do que ganha – e que, logo, teria como única saída cortar seus gastos para saldar suas dívidas – , uma vez que, desde meados da década de 90, o Brasil apresentou continuamente superávits primários ano a ano (resultado da diferença entre a arrecadação e os gastos do governo), à exceção dos anos de 2014 e 2015.

Para Galípolo, há uma certa ala do pensamento econômico brasileiro que tem buscado, por meio do recurso a um linguajar técnico e hermético, próprio da área econômica, “afastar o grande público do debate”. “Os economistas querem é enrolar vocês, dizendo que não há nada que se possa fazer fora do que prevê a economia que eles defendem”, afirmou.

No mesmo tom, Filgueiras foi enfático: “As finanças públicas são o centro de disputa da luta de classes, em torno do direcionamento dos recursos arrecadados pelo conjunto da população. Essa é uma discussão muito séria para ser deixada na mão de economistas. É uma discussão que precisa ser popularizada.”

“Servidão por dívida”

Galípolo e Filgueiras procuraram evidenciar a falácia economicista de que o congelamento de gastos por 20 anos é o “remédio amargo” necessário para conter uma suposta tradição de irresponsabilidade fiscal (gasto maior que arrecadação) do Estado brasileiro, cuja imagem simplificada para o público é de ineficiente e corrupto. Isso com a finalidade de “melhorar o risco-país”, visando uma suposta “recuperação da confiança” do capital internacional.

Após mostrarem gráficos que indicam que o Brasil tem arrecadado mais do que tem gasto ao longo das últimas décadas, os dois economistas apontaram que a atual explosão das contas públicas tem outros motivos: reflexos da crise mundial desde 2008, que impactaram na redução da atividade econômica e da arrecadação também no Brasil; e crescimento exponencial da dívida pública, que consome quase metade do orçamento para pagar credores e é gerida por uma política “autonomizada” em relação às necessidades da economia real. Tudo isso num contexto de progressiva desindustrialização da economia brasileira desde meados dos anos 80, que reforça a condição de subordinação tecnológica e financeira, típica de economias periféricas, que os últimos governos não conseguiram superar.

A dívida pública, segundo gráfico apresentado por Filgueiras, consumiu em 2015, com pagamento e juros, 42,43% do PIB (Produto Interno Bruto, a soma de toda a riqueza gerada pelo país anualmente) – proporção bem maior que a de 2006, quando esse percentual era de 36,7%. Entretanto, a mesma PEC que congela o gasto público por 20 anos deixa de fora dessa contenção de despesas os gastos com a dívida – algo contra-intuitivo mesmo na incorreta analogia com o gasto familiar, uma vez que isso significaria, por exemplo, um pai de família optar por pagar o saldo devedor do cartão de crédito a comprar alimentos ou remédios para casa.

“Ao contrário do que se diz, o aumento da dívida pública não decorreu de sucessivos déficits fiscais, mas sim da autonomização da própria dívida”, disse Filgueiras. “Não é verdade que o Brasil tem uma dívida alta porque todos os anos precisa cobrir um gasto maior do que a arrecadação. Entre 1998 e 2013, não há um centavo a mais na dívida pública que se justifique pelo gasto, porque houve sucessivos superávits”, demonstrou Galípolo.

Galípolo explicou que a dívida pública brasileira passou de externa (financiada por bancos e fundos internacionais, logo, em dólar) a interna (financiada pelo capital nacional, logo, em real) ainda no primeiro governo Lula (2003-06). Isso teve dois impactos: por um lado, desatrelou a dívida da variação do dólar, sobre a qual o Estado brasileiro não tem controle. Por outro, significou o refinanciamento, junto a credores nacionais, a juros muito mais altos que os cobrados anteriormente.

Assim, a dívida cresceu exponencialmente ao longo dos últimos anos. Mas a repercussão desse crescimento perante os “mercados” só se deu recentemente, após a queda do PIB registrada a partir de 2014, que elevou a relação dívida/PIB a patamares que geram “desconfiança” dos investidores internacionais. Portanto, num momento em que o Estado arrecada menos e os juros da dívida se mantêm os mais altos de todo o mundo (14,25% ao ano), a solução oferecida pela PEC 241 é limitar drasticamente os já insuficientes gastos com educação, saúde e previdência para continuar pagando os investidores, por um prazo indefinido.

Caríssima para o país, a rolagem da dívida hoje custa mais que toda a soma do gasto público brasileiro – mas, mesmo assim, será mantida inalterada pela PEC. Filgueiras afirma ainda que não faz sentido o Brasil manter reservas em dólares que hoje chegam a US$360 bilhões, aplicadas em títulos públicos dos EUA a rendimento de 0,5% ao ano, enquanto paga 14,25% de juros sobre os títulos que emite. “O crescimento da dívida é autônomo, tem como finalidade financiar o rentismo no Brasil, não tem nada a ver com [sanear] gasto público. O Brasil, com a PEC, está adotando um regime de ajuste permanente da economia. Uma verdadeira ‘servidão por dívida'”.

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Impacto social

Simulações do que teria acontecido se a PEC 241 tivesse sido implementada antes – por exemplo, desde 2010 – mostram que o Brasil teria tido superávits primários ainda maiores; porém, a um custo social imenso, uma vez que gastos em educação, saúde, previdência e programas sociais teriam sido drasticamente menores.

Filgueiras observou que, embora o discurso de descontentamento com a política econômica do segundo governo Dilma tenha tido como argumento central a irresponsabilidade fiscal, o governo Temer adotou justamente medidas que, de imediato, aumentaram o déficit público no orçamento (R$ 170 bilhões, contra R$ 90 bi, aproximadamente, da proposta enviada por Dilma ao Congresso). E com a PEC 241, o que se é pretende compensar esse déficit com um “arrocho permanente” dos gastos com saúde, educação, previdência, transportes etc. “Isso significa fazer algumas bondades imediatas para contentar as camadas que dão sustentação a esse governo ilegítimo, para depois fazer maldades por 20 anos seguidos”, observou Filgueiras.

A universidade pública é uma das áreas mais diretamente afetadas pela PEC. Em sua exposição, o pró-reitor Eduardo Mota mostrou que, entre 2011 e 2016, houve aumento de 30,9% do orçamento das universidades federais. Porém, a proposta de orçamento para 2017 prevê um corte de 6,7% – que, com a implementação da PEC 241, deverá ser congelado por 20 anos a partir de 2018, contemplando reajustes limitados à reposição da inflação. Isso sem contar a previsão de desvinculação do orçamento – ou seja, uma espécie de ‘liberação’ para que o governo não seja obrigado a gastar um percentual fixo com rubricas como educação (hoje próximo a 18%), saúde etc.

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“Se a PEC tivesse sido implementada em 2010, só a UFBA teria perdido R$ 217 milhões. Em vez de aumentar 21,5%, o orçamento da Universidade teria caído 3,7%. O cenário para o futuro, com a PEC, é de congelamento, de estagnação”, sintetizou Mota.

Ocupação

A palestra foi realizada numa Reitoria ocupada pelos estudantes da UFBA há uma semana, contra a PEC 241 e a Medida Provisória que altera o Ensino Médio, entre outras pautas. O reitor João Carlos Salles mediou o debate e franqueou a palavra a entidades representativas dos estudantes (DCE), dos técnico-administrativos (ASSUFBA) – em greve desde o dia 24/10 – e dos docentes (APUB). “Continuaremos promovendo debates e atividades como esta”, disse Salles.

Fonte: UFBA